A linha e o círculo: duas maneiras (incompletas) de ver o mundo
Como o lado oculto da Lua projeta seu arco nas margens geopolíticas da Terra
A paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, uma torção reflexiva mínima. Não temos dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge dele, e o outro ponto de vista preenche o vazio que não podemos ver do primeiro ponto de vista.
— Slavoj Zizek, A Visão em Paralaxe
Em conversas com outros amigos que também se enveredam pelos caminhos da pesquisa, é comum buscamos por respostas capazes de reverter, mesmo que em um âmbito reduzidíssimo, um pouco da falta de coerência e sensibilidade dos dias atuais. Esse efeito embrutecedor, que apelidei — em uma alusão direta a uma das mais perturbadas letras de Roger Waters —, de “torpor confortável”, tem origens não apenas na ignorância e em ideologias de fácil explicação, mas, principalmente, em nossos desejos mais recônditos de auto-opressão.
As linhas narrativas que partem do icônico The Dark Side of the Moon e desembocam na gravação de Confortably Numb, refletem — junto de toda a explosão neurótica do disco The Wall — uma virada de perspectiva que parece ter se tornado o modus operandi dos dias de hoje: movidos pela necessidade de acomodar nossas cabeças no travesseiro, porém impossibilitados de enxergar o “lado oculto da Lua”, optamos por amortecer os sentidos e, muitas vezes, apelar a uma lógica reversa, perversa e, sobretudo, confortável. Passando pelo fascismo às avessas da fábula stalinista de George Orwell e pelo brilho do “diamante louco” de Syd Barret, a geometria dos traumas de Waters — concretizada nas gravações do Pink Floyd que vão de 1973 a 79, período que se inicia 14 anos após a primeira fotografia da face oculta da Lua e termina uma década exata antes da queda do Muro de Berlim — tangencia muitas das lacunas deixadas pelo X inescrutável de nossa percepção, antevendo como a perda de referenciais e a fragmentação de narrativas unificadoras, sedimentos do que hoje chamamos de pós-modernidade, nos condenaria ao niilismo negativo. Aqui, os blocos de uma realidade fabricada deixam de ser um obstáculo ao devir da vida — como o queria um Nietzsche pré-distorcido pelo fascismo —, para erigir uma Cortina de Ferro que encerra, em seu próprio núcleo, a mais irresistível pulsão de morte.
A fim de partirmos de um esquema tridimensional, proponho somar, às já mencionadas corrida científica-espacial e rachadura política-global, um plano filosófico-conceitual. Em sua célebre reunião de artigos publicados em 1958, Anthropologie Structurale, Claude Lévi-Strauss resgataria, por meio de Paul Radin, o caso dos Winnebagos: um povo nativo da América do Norte, falante da língua Sioux, que se subdivide internamente em duas metades — wangereri, ou “metade de cima”, e manegi, ou “metade da terra”. O curioso dessa classificação, registrada no capítulo Les Organisations Dualistes Existent-Elles?, é que ela não foi representada da mesma maneira pelos chefes de suas respectivas partes, sugerindo uma espécie de fissura originária entre cosmovisões. Enquanto os informantes da “metade de cima” retrataram a organização coletiva como uma esfera cortada diagonalmente aos pontos cardeais, os da “metade da terra” a traduziram em círculos concêntricos.
A tentação de colocar uma etiqueta polarizada conforme os moldes modernos sobre cada um desses traçados é enorme, e nossas cabeças embevecidas de maniqueísmo quase não conseguem resistir em classificar uma delas como “boa” e outra como “má”. Porém, como o próprio título desse ensaio anuncia, ambas maneiras de ver o mundo — seja pelo diâmetro que divide a esfera, seja pelo centro separado da margem — são incompletas. O curioso, uma vez que as representações foram criadas pelos chefes do povoado, é como a figura da esquerda — apesar de sua aparência separatista — “inclui” duas frátrias e diversos clãs, enquanto a segunda contempla apenas as cabanas dos autores dos desenhos, ou seja, os supostos governantes do território. No caso dessa última, onde foram parar as habitações que deveriam ocupar as margens do círculo? Recomendo, por enquanto, deixarmos nossa ansiedade em suspenso e nos limitarmos a uma conclusão parcial, derivada da brilhante citação de Slavoj Zizek evocada acima: se não há dois pontos de vista, mas um ponto de vista e o que foge dele, enquanto outro ponto de vista preenche o vazio que não podemos ver do primeiro, podemos arriscar dizer que o segundo desenho elimina o antagonismo social, assim como sua diversidade, em nome de uma harmonia forjada. Ou seja: a figura da direita distorce a cisão da outra (seu ponto cego), joga as sobras fenda abaixo e, sem nenhum pudor, erige um cenário de fantasia. Sei que parece um filme da Disney, mas esse é o mundo no qual desejamos crer desde quando colocamos a linguagem e a fabulação a serviço da mais perfeita, e por isso também maquiada, ordem.
Do lixo ao luxo, ou o Brasil entrevisto em seis músicas de Chico e Caetano
A boa ou, a depender do ponto de vista, má notícia, é que o lado oculto da Lua não é totalmente invisível a olho nu. Graças a um fenômeno conhecido como libração (do latim librare, que significa “balançar”), podemos enxergar pelo menos 18% de sua superfície velada em épocas específicas do ano. Enquanto a dialética hegeliana prega que a realidade é criada no atrito de tese e antítese, a libração parece se confirmar como o balanço lunar onde, em um verdadeiro movimento de síncopa e contratempo, são liberados os resíduos escondidos pela “globalização” dos modos de vida terrenos. É aqui, na superação da estética da fome pela dinâmica de altos e baixos tropicalista, que as regiões periféricas encontram seu estranho brilho: quando o mapa do terceiro mundo subverte a negligência em poesia e o lixo se transmuta em luxo. Um exemplo inicial:
“[…] Voltei pro Crato e fui fazer artesanato
de barro bom e barato pra mó de economizar […]
[…] Juntei a prole e me atirei no São Francisco
enfrentei raio, corisco, correnteza e coisa-má […]
[…] Ver Ipanema foi que nem beber jurema
que cenário de cinema, que poema à beira-mar […]
[…] Não tem carranca, nem trator, nem alavanca
quero ver que é que arranca nós aqui desse lugar.”
— Chico Buarque, A Violeira
O primeiro ponto que salta à atenção nessa letra de Chico é a escolha idiossincrática da geografia, do vocabulário e dos referenciais culturais. E por que essa seleção é única? Pela simples razão de jogar um holofote nas periferias globais e ousar valorizar lugares, vernáculos e saberes sufocados pelo projeto de colonização, cuja presunção sempre foi a de varrer a “desordem” da face da Terra às custas do apagamento de sua diversidade. Exemplo prático: os leitores desse ensaio, sem qualquer ligação com o Ceará ou com estados vizinhos deste, dificilmente ouviram falar, durante seus primeiros anos de formação, de um lugar como o Crato. Muito menos de que a cerâmica artesanal da região é um patrimônio histórico-cultural à altura dos mais interessantes do mundo — o mesmo pode ser dito em relação ao rio São Francisco e suas carrancas. Por outro lado, com certeza foram todos inundados com informações históricas e culturais sobre Roma, Paris, Berlim, Nova Iorque e assim por diante; aos sul-americanos que cultivam o interesse de conhecer a gênese e as ramificações de nossas bases culturais, linguísticas e territoriais, sempre restou bancar o esforço de nadar contra a maré. Enfim, “A Violeira” é uma canção escrita por quem sabe como ninguém que todo erudito um dia já foi popular, por isso não teme colocar expressões como “mó de” ao lado de trechos como “poema à beira-mar”.
“[…] Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo.”
— Caetano Veloso, Reconvexo
Esse último exemplo põe ainda mais pimenta no assunto, uma vez que Caetano, além de ser conhecido por suas polêmicas, não hesita em misturar referências pessoais com figuras populares em suas canções — no caso, Dona Canô, mãe do compositor, Joãozinho Beija-Flor, célebre carnavalesco, e Bobô, famoso centroavante do Bahia que ajudou seu clube a conquistar o título de bicampeão brasileiro em 1988. A versão mais difundida do contexto geral de “Reconvexo” é que se trata de um contra-ataque ao jornalista Paulo Francis, à época representante do alto escalão dos vira-latas complexados, quase sempre residentes fora do Brasil, obstinados em comparar seu país de origem à cafonice imperialista — no melhor estilo que liga os apresentadores do programa Manhattan Connection aos Faria Limers. Aqui, o recôncavo baiano convoca claramente a geometria do reconvexo, seu oposto diametral, em um balanço que ataca o verdadeiro impostor nesse esquema de curvas: o quadrado. Partindo de um ponto de vista originário, o qual — ao abraçar o desconhecido e tudo aquilo que lhe foge —, desmascara a farsa do ponto cego no ato, Caetano denuncia a velha história do cubo que insiste em forçar seu encaixe no movimento orgânico da vida.
“ […] Tomei a costeira em Belém do Pará
Puseram uma usina no mar
Talvez fique ruim prá pescar […]
[…] No Tocantins
O chefe dos Parintintins
Vidrou na minha calça Lee […]
[…] Em março vou pro Ceará
Com a bênção do meu Orixá
Eu acho bauxita por lá
Meu amor.”
— Chico Buarque, Bye-Bye Brasil
Em uma alusão direta à segunda campanha de “ocupação” do Brasil patrocinada pelo Estado, essa letra — que talvez seja uma das mais célebres de Chico, em parte graças à sua projeção pelo filme homônimo de Cacá Diegues —, é uma crítica sutil e bem elaborada aos contrastes de perspectiva apontados até agora. Como muitos dos que estudam a história de nosso país sabem, um dos grandes interesses em negligenciar o problema da seca da região Nordeste, protagonizado pelos centros econômicos nacionais, sempre foi a de usar a população migrante como força de trabalho barata e de manobra política. É assim que a região metropolitana do sudeste foi e continua sendo construída, e foi assim que as áreas supostamente “vazias” da floresta amazônica foram integradas à cadeia produtiva global. Passado o ciclo da borracha, era a vez do garimpo e da extração de madeira cavarem suas veredas pelas vias predatórias da Transamazônica, em um avanço decidido a expelir ou contaminar os últimos intocados pela lógica do capital: a população ribeira, quilombola e indígena refugiada no Norte desde os primórdios do processo de colonização. Aqui, as menções diretas à represas hídricas que tiram a subsistência de pescadores, a fetichização das mercadorias que atinge até os líderes dos povos originários e, sobretudo, o sonho de riqueza material imputado naqueles cujas terras foram drenadas pela urbanização, salta em cada estrofe, como as sombras contínuas e crescentes que o eclipse do eurocentrismo solar projeta sobre a marginália lunar.
“[…] No cais de Araújo Pinho
Tamarindeirinho
Nunca me esqueci
Onde o imperador fez xixi.
Cana doce, Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir.”
— Caetano Veloso, Trilhos Urbanos
Aproveitando os breves respiros da cegueira branca colonial, é possível observarmos, a partir de pontos bem específicos, uma variada paleta de cores do sob terreno tropical. E o que se revela de tal perspectiva? A passagem do tempo, a nostalgia e os lugares imaginários que se formam em um verdadeiro “cinema transcedental”. Como o próprio Caetano relata, há uma lenda que circunda a visita oficial do Imperador D. Pedro II à Santo Amaro, o qual teria amarrado seus cavalos sob dois tamarindeiros frontais à casa de Araújo Pinho, a maior da cidade, e urinado ao pé das árvores frutíferas. Para além da história hegemônica, até hoje predominante no nosso ensino, entrevemos uma cena parecida com aquela que desmistifica o momento chave da Independência do Brasil, declarada pelo pai do imperador mencionado, segundo a qual esse último estaria montado em um burro e parado às margens do Ipiranga por pura indigestão. O arco projetado pelo lado oculto da Lua também é aquele onde as coisas descem do pedestal, revelam sua nudez, e reanimam o gosto de cana doce da infância em nossa memória. Detrás de cada vetor que reflete a si mesmo existe uma estrela, há muito distante, cujo brilho sutil só pode ser entrevisto em ângulo de refração, a partir de um desvio mínimo do espelho totalizante.
“[…] Foi Antonio Brasileiro quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada, ver o inferno e maravilhas […]
[…] Vi cidades, vi dinheiro; bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius, beba Nelson Cavaquinho […]”
— Chico Buarque, Paratodos
A homenagem mais que digna de Chico aos pilares da música brasileira moderna é um passo adiante nessa toada. Além de evocar o maestro soberano como guia, ao reconhecer a névoa diante da vista dos artistas do terceiro mundo — uma metáfora para o atrito de tese e antítese que os aguarda —, o autor faz questão de mencionar uma jornada feita não só de inferno, mas também de maravilhas. Ao submundo composto pela conjunção de cidades, dinheiro, bandoleiros, hospícios e o suicídio de moças, é magistralmente contraindicado o uso de drogas benéficas: Ari Barroso, Vinícius de Moraes e Nelson Cavaquinho. Qual a única salvação para quem se situa nas margens geopolíticas da Terra? Fumar, cheirar e beber a arte daqueles que abraçaram o que há de melhor e o que há de pior em nossa condição. Eis uma tarefa de quem já foi para quem ainda virá. “A bênção, todos os grandes sambistas do Brasil, branco, preto, mulato, lindo como a pele macia de Oxum”, já dizia o mencionado poetinha e diplomata, ao que Chico complementa no melhor estilo com um “Evoé jovens a vista”.
“[…] Ninguém supõe a morena dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses à Paraíba
Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?”
— Caetano Veloso, Terra
Por fim, a famosa “canção do exílio” de Caetano. Escrita a partir das recordações de quando esteve preso pela Ditadura Militar, época na qual o compositor visualizou a primeira foto da Terra feita a partir do espaço, a letra evoca, de maneira quase caleidoscópica, musas inspiradoras que se metamorfoseiam — no melhor estilo ovidiano — em uma mulher, na terra natal do artista (a Bahia e o nordeste do país), além de, é claro, o nosso planeta. O trecho “mando um abraço pra ti pequenina”, uma alusão direta à composição Paraíba de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, é mais um exemplo da habilidade de Caetano em dialogar intertextualmente com os vislumbres únicos de nossa periferia tropical, habilidade que o mesmo já vinha colocando em prática desde seu pivotal disco Transa de 1972. Esse último, assim como Construção, obra máxima de Chico gravada em 1971, é fruto de experiências ligadas ao exílio político, o que nos leva a uma última e pré-conclusiva indagação: seria o olhar de fora imprescindível à descoberta de nossos pontos cegos?
Todo astronauta, quando enviado à órbita da Terra, retorna profundamente tocado pelo overview effect, conhecido como efeito perspectiva no nosso português. Dentre os relatos dessa vivência que, guardadas as devidas proporções, possui características análogas às de viagens psicodélicas e revelações místicas, é possível encontrarmos linhas tão poéticas como aquela elaborada em Reconvexo de Caetano — “[…] a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma” —, ou mesmo próximas das presentes na letra Sobre Todas as Coisas de Chico — “[…] nosso Senhor não há de ter lançado um movimento terra e céu, estrelas percorrendo o firmamento em carrossel, pra circular em torno ao criador […]” —, provando como o lirismo não é de todo distante da ciência e, muito menos, da filosofia. Nossa terra, seja ela o colo da amada, a cidade natal, o planeta que habitamos ou — para finalizarmos com um termo caro à filosofia da ciência — nossos paradigmas individuas e coletivos, necessita sim de alguns passos de recuo a fim de serem reconhecidos. E não só isso: para ser flagrada em seu movimento real, cujo mote se dá no atrito de múltiplas e inconciliáveis contradições. Daí seu assombroso horror, mas também sua sublime beleza.
O lado oculto da Lua abriga tanto nossos bons quanto maus demônios. Por isso só pode ser entrevisto quando, na busca de superar a linha cega que divide “nós” e “eles”, logramos projetar seu arco sobre as luzes e sombras das margens da Terra.
Ouça aqui as seis canções analisadas no ensaio:
Esse ensaio é uma ramificação dos temas abordados em meu livro Terra dos Pássaros. Para adquirí-lo, basta acessar o link da editora abaixo:
Eu gostei tanto desse texto que li e reli. E agora voltei a ler novamente. É tão bom ver alguém catutenando as ideias com os mesmos referências que a gente, só que percorrendo outras veredas, o que engrandece demais o nosso repertório. É aquela história: o Brasil-nação disputando com todas as brasilidades, enquanto um produz assujeitamentos, abstinências e subalternização, outro produz sujeitificação, abundância e (re)existências.