James Baldwin e a Revolta de Jó
A escatologia anti-colonialista no pensamento de um dos maiores nomes da literatura norte-americana do século XX
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James Baldwin sempre me foi uma figura incontornável. Apesar de meu conhecimento do movimento por Direitos Civis estadunidenses ser limitado a algumas canções de Bob Dylan, ao discurso de Luther King Jr. e ao assassinato de Malcolm X — além de, é claro, a figura imponente dos Panteras Negras —, seu nome sempre saltou à minha vista entre citações, capas de livros e fotografias históricas. Recentemente, assisti a um mini-documentário centrado em sua figura no MUBI: Meeting the Man, James Baldwin em Paris, é uma tentativa de dialogar com um homem em guerra política, histórica e espiritual, que sente como ninguém os efeitos nefastos da colonização, da escravização e da posterior segregação racial imposta à população afro-americana no “Novo Mundo”.
Eis que, em meio às minhas recentes pesquisas, de repente me deparo com cinco páginas no original em inglês do seu livro de ensaios No Name in the Street, publicado pela primeira vez em 1972. Capturado logo na primeira estrofe, senti-me tentado a transcrever o início do segundo ensaio da obra, To Be Batized, centrada na figura Malcolm X. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que a citação que abre o livro faz referência justo à história de Jó, induzindo o leitor a uma associação direta entre as missões colonizadoras e o desafio que Satanás lança a Deus — ao exigir uma tortura injustificada para um dos seres mais íntegros que já havia pisado na terra.
Essa passagem, onde o próprio cânone toma a responsabilidade de desfazer o nó górgio do castigo e do pecado, é retomada por Baldwin em nome de uma escatologia de redenção dos excluídos. Aqui, a resignação de Jó se transfigura em uma revolta paciente, fadada a eclodir não por força dos vencidos, mas pelo moralismo vazio dos vencedores. A seguir, minha transcrição das páginas originais do livro, cujo tom profético das linhas finais alude às esperanças do próprio autor, quando este dizia que No Name In the Streets não poderia ser terminado por ele, mas apenas pelas gerações futuras.
Pois então, que os nomes antes banidos sejam restituídos de seu único pecado: o de estarem, justo quando Deus hesitou, no caminho do Satã.
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Todas as nações do ocidente foram tomadas por uma mentira, a mentira de seu pretenso humanismo; isso significa que sua história não tem uma justificativa moral, e de que o Ocidente não possui autoridade moral. Malcolm, ainda mais concretamente que Frantz Fanon — uma vez que Malcolm operou em um idioma afro-americano, e referiu-se à situação afro-americana — capturou a natureza dessa mentira e suas implicações, relevantes e articuladas às pessoas que ele serviu. Ele tornou cada vez mais articulados os modos nos quais essa mentira, dada a história e o poder das nações Ocidentais, virou um problema global, ameaçando a vida de milhões. “Vil como sou”, diz um dos personagens d’O Idiota de Dostoiévski, “Eu não acredito nos vagões que trazem pão à humanidade. Pois os vagões que trazem pão à humanidade, sem nenhuma base moral de conduta, podem friamente excluir uma parte considerável da humanidade do proveito do que é trazido; e é como tem sido.” De fato. E assim é hoje. O personagem de Dostoiévski se referia a uma proliferação desimpedida de linhas de trem, e do então prevalecente otimismo (que era perfeitamente natural) assim como do efeito inspirador que essa conquista das distâncias deve ter provocado na vida dos homens. Mas Dostoiévski viu que a ascensão desse poder poderia “friamente excluir uma parte considerável da humanidade.” Pois é justo dessa exclusão que a ascensão de tal poder depende; e agora os excluídos — “como já aconteceu uma vez” — cujas terras foram desprovidas de minerais, por exemplo, que foram para a construção das estradas de ferro, linhas de telégrafo, dispositivos de TVs, linhas aéreas, armas, bombas e frotas, devem se esforçar, a um custo exorbitante, para comprar seus recursos manufaturados de volta — o que não é nem remotamente possível, uma vez que eles devem se empenhar nessa compra usando o dinheiro emprestado de seus exploradores. Se eles tentam efetuar sua salvação — sua autonomia — nos termos ditados por aqueles que os excluíram, eles se encontram em uma delicada e perigosa situação, e se eles se recusam a tanto, é ainda mais desesperador: difícil saber qual caso é pior. Em ambos, eles estão confrontados com as necessidades implacáveis da vida humana, os rigores da natureza humana. Quem, por exemplo, trabalhou em, ou mesmo testemunhou, qualquer um dos programas “anti-pobreza” do gueto norte-americano, obteve um entendimento instantâneo da “ajuda externa” aos países “subdesenvolvidos”. Em ambos locais, os aventureiros mais habilidosos aprimoram a sua condição material. Os mais dedicados aos nativos tornam-se loucos ou inativos — gente do submundo — por frustração; enquanto a miséria dos famintos, dos milhões sem voz, aumenta — e não apenas isso: sua reação à miséria é descrita como criminosa. Em nenhum lugar, esse padrão perverso é mais claro que na América do Norte de hoje, mas o que a América do Norte está fazendo dentro de suas fronteiras, ela está fazendo ao redor do mundo. Temos que lembrar como os investimentos norte-americanos não podem ser considerados seguros, a menos que a população seja considerada tratável; com isso em mente, considere a reação dos judeus que se vangloriam de enviar armas a Israel, e o destino provável dos negros norte-americanos que desejam iniciar uma corrida para enviar armas à população preta da África do Sul.
A América do Norte prova, certamente, se é que alguma nação o conseguiu alguma vez, como o homem não pode viver só de pão; por outro lado, os homens dificilmente conseguem reagir a esse princípio, até que eles possam — e, ainda mais, suas crianças — ter pão suficiente para comer. A fome não tem princípios, ela simplesmente faz o homem, no pior, miserável, e, no melhor, perigoso. Também, isso deve ser lembrado — e nunca é dizer demais — que esses séculos de opressão são também a história de um sistema de pensamento; então, tanto o ex-homem que se considera mestre, quanto o ex-homem tratado como uma mula, sofrem de um tipo particular de esquizofrenia, na qual um contém o outro, anseia tornar-se o outro: “O que conecta o escravo a seu mestre,” observa David Caute, em sua novela, O Declínio do Ocidente, “é mais trágico do que aquilo que os separa.”
É verdade que a liberdade política é uma questão de poder e nada tem a ver com moralidade; e se alguém já almejou achar um jeito de contornar esse princípio, a eficácia do poder estabelecido, que hoje está nas mãos das nações Ocidentais e ajuda a definir de maneira aguda a atual crise norte-americana, tratou de despedaçar suas esperanças. No mais, como os hábitos de pensamento reforçam e sustentam os hábitos do poder, não é nem mesmo remotamente possível aos excluídos tornarem-se incluídos, pois essa inclusão significaria, precisamente, o fim do status quo — ou poderia resultar, como muitos dos mais sábios e honrados colocariam, em uma degradação das raças.
Mas para o poder se sentir realmente ameaçado, ele deve de algum modo se perceber na presença de outro poder — ou, mais precisamente, uma energia — que ele não sabe como definir e, portanto, não sabe como controlar. Por um longo tempo, por exemplo, a América do Norte prosperou — ou pareceu prosperar: essa prosperidade custou a vida para milhares de pessoas. Agora, nem mesmo as pessoas que são os maiores recipientes dos benefícios dessa prosperidade conseguem prolongar seus benefícios: se elas não conseguem nem mesmo compreendê-los e têm suas ações limitadas por eles, quem dirá poder ultrapassá-los. Acima de tudo, elas não podem, ou não ousam, avaliar ou imaginar o preço pago por suas vítimas, ou sujeitos, por esse modo de vida, e assim elas não conseguem nem mesmo se permitir saber por que as vítimas estão revoltadas. Elas são forçadas, então, à conclusão de que as vítimas — os bárbaros — estão revoltados contra todos os valores estabilizados da civilização — o que é tanto verdade quanto não o é — e, de modo a preservar esses valores, por mais sufocantes e sem graça que esses valores tornaram suas vidas, a maioria das pessoas busca desesperadamente representantes preparados para compensar, em crueldade, o que tanto a eles quanto às pessoas falta em convicção.
Essa é uma fórmula para o declínio de uma nação ou império, pois nenhum império pode se manter pela força apenas. A força não funciona do modo que seus fomentadores parecem pensar. Ela não é capaz, por exemplo, de revelar à vítima a força de seu adversário. Pelo contrário, ela revela a fraqueza, até mesmo o pânico de seu adversário, e essa revelação investe a vítima de paciência. Além disso, no limite, é fatal criar muitas vítimas. O vitorioso não pode fazer nada com essas vítimas, pois elas não pertencem a ele, mas — às próprias vítimas. Elas pertencem às pessoas que estão lutando. As pessoas sabem disso, e tão inexoravelmente quanto o chamado — o chamado de honra — das vítimas se expande, seus desejos tornam-se inexoráveis: elas resolvem que as mortes de seus irmãos não podem ter sido em vão. Quando esse ponto é alcançado, por mais longa que a batalha tenha sido, o vitorioso nunca pode ser o vitorioso: pelo contrário, todas as suas energias, sua vida inteira, estão atadas a um terror que ele não pode conceber, um mistério que ele não pode decifrar, uma batalha que ele não pode vencer — ele simplesmente se tornou o prisioneiro das pessoas que pensava arrebanhar, acorrentar, ou assassinar em submissão.
O poder, então, que não pode ter moralidade intrínseca, depende ainda da energia humana, dos desejos e vontades dos seres humanos. Quando o poder se traduz em tirania, significa que os princípios dos quais esse poder depende, e nos quais se justifica, estão falidos. Quando isso acontece, e está acontecendo agora, o poder só pode ser defendido por meio de mediocridades — e mares de sangue. Os representantes do status quo estão doentes e divididos, e mirando com medo nos olhos de sua juventude; enquanto os excluídos começam a perceber, tendo suportado tudo, que eles podem suportar tudo. Eles não sabem a forma precisa do futuro, mas sabem que o futuro pertence a eles. Eles entendem isso — paradoxalmente — pela falência da energia moral de seus opressores e começam, quase instintivamente, a forjar uma nova moralidade, a criar os princípios nos quais um novo mundo será construído.
James Baldwin, 1972.
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