Só sobrou o passarinho pra cantar a história (de novo)
Por uma pluralidade de linguagens, inteligências e humanidades
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Uma das principais motivações que me levaram a escrever meu livro inaugural, Terra dos Pássaros, foi a de responder a seguinte pergunta: o quanto o desvendar de formas de linguagem e inteligência hiper sensíveis, sutis por demais à escala ‘humana’ de valores, poderia colocar em xeque a matriz pela qual agimos no mundo? Enquanto a sina da personagem central da obra, a arqueóloga Maia Luíza do Carmo, é a de seguir esse rastro por entre cavidades de referências históricas e camadas de improviso literário, o ensaio presente surgiu de uma necessidade complementar: a de abordar a mesma questão pelo caminho esquivo das definições. Pra isso, é necessário entendermos melhor tanto o que chamamos de linguagem quanto de inteligência. E, mais importante ainda, o que entendemos por humanidade — essa pretensa variante do antropocentrismo quinhentista que há meio milênio justifica os modos de vida dominantes.
Como minha intenção não é pregar a desavisados, o roteiro aqui é o seguinte: o ensaio é breve e não tem a mínima pretensão de converter os fiéis da lógica aristotélica, os devotos do racionalismo científico e muito menos os que já têm garantido seu torrão no paraíso dos privilégios terrestres. Brincadeiras com a terminologia da religião à parte, essas metáforas não foram escolhidas à toa; as noções de linguagem, inteligência e, principalmente, humanidade, passam pelo entendimento daquilo que o poeta Fernando Pessoa chamava de preceitos, cuja primeira classe é formada por memes — empresto aqui livremente um conceito caro ao biólogo Richard Dawkins — de cunho religioso.
Dos três níveis de preceitos elencados por Pessoa em seu fabuloso ensaio Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular, os dois primeiros — preceitos morais e preceitos racionais — são os únicos dignos de serem abertos publicamente. O terceiro, formado pelos ditos preceitos práticos, formam a fina flor do nosso gene egoísta (Dawkins, novamente) e não ficam lá muito elegantes quando expostos em vitrines. Tolhido pela autorreprodução da noção de valor de um lado e pela miragem de reificação, ou ‘coisificação’, de outro, o tal do gene egoísta — amplamente endossado pela adaptabilidade darwiniana — obedece a um só e mesmo viés: aquele que leva o “vencedor” a crer que todas as suas conquistas vieram por mérito próprio e nunca dependeram da sujeição de outros. Sujeição essa que, na maioria das vezes, pode ter sido facilitada por uma obra pura do acaso — vide aqui a hecatombe provocada por doenças trazidas da Europa à América.
Aliás, as aspas do vencedor não são gratuitas. Ao fim do texto, veremos por quê. Antes, alguns exemplos das três classes de preceitos, nas palavras do próprio Pessoa:
“Exemplo de um preceito moral: Não faças aos outros o que não quiseres que eles te façam. Exemplo de um preceito racional: Conhece-te a ti mesmo. Exemplo de um preceito prático, pouco moral: Se quiseres enganar alguém por intermédio de um enviado, engana primeiro esse enviado, porque então ele mentirá com convicção.”
A fim de evidenciar nosso foco temático, podemos ainda enumerar essas três classes de preceitos da seguinte forma: (1) preceitos de sobrevivência histórica, (2) preceitos de sobrevivência social e (3) preceitos de sobrevivência individual. Vista de maneira conjunta, essa tríade religiosa-filosófica-política é por si só capaz de pavimentar o caminho ao surgimento da linguagem e inteligência típicas do projeto da humanidade. Explico.
Antes, uma última contextualização: essas classes de preceitos nascem de um esforço, daquele que pra muitos é o maior dos poetas modernos, em compreender genuinamente a ascensão da administração científica na virada do século vinte. Não à toa, o ensaio nasce bem em meio a um período de crescente descontentamento com as condições de trabalho pós-Revolução Industrial e da eclosão das duas Grandes Guerras. O que vem depois? A virada linguística da filosofia, na qual Ludwig Wittgenstein descobre um prisma completo de cores por trás do raio monocromático da lógica aristotélica, a teoria das inteligências múltiplas por Howard Gardner — cume da flexibilização dos testes de QI ocasionada pela revolução pedagógica de Jean Piaget e, por fim e com ainda mais ousadia, a não-identificação e consequente refutação do conceito de humanidade pelo nosso Ailton Krenak. Essa linha do tempo que, grosseiramente resumida, cobre o período entre guerras e culmina na pandemia de Covid-19, ainda gestou as três maldições de nossa era: o algoritmo, a IA e o contestado antropoceno. Voltarei mais a frente na relação umbilical desses últimos com as definições mestras que guiam nosso tema.
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Por enquanto, arrematemos a ligação dos preceitos do grande poeta português com aquilo que garante a sobrevivência social, individual e histórica do paradigma dominante de nossa espécie: as noções de linguagem, inteligência e humanidade. Uma está pra outra nessa mesma sequência respectiva anterior. A linguagem é o código vivo, porém altamente policiado, que garante a coesão, a coordenação e as prerrogativas da vida em sociedade. A inteligência é quem permite que, dado um objetivo específico, as estratégias de um indivíduo subestimem outras menos eficazes — sim, por mais paradoxal que seja, é a própria noção de inteligência quem garante a desigualdade social, como os porcos da fazenda de George Orwell bem atestam. Por fim, a humanidade é a ideia que dá alma ao progresso histórico. Esse mesmo progresso histórico que, conforme somos levados a crer desde pequenos adultos, começa milagrosamente na Grécia de Platão e floresce na social-democracia de meia dúzia de países nórdicos na União Europeia.
O tal do iluminismo ocidental insiste há séculos em chutar pra debaixo do tapete toda a sujeira deixada pela escravização, colonização e dominação de quem, infelizmente, não conseguiu alcançar o mínimo estágio de ‘linguagem’ e de ‘inteligência’ aceitável pra ser condecorado com a medalha de ser ‘humano’. Lembram do argumento principal da igreja pra escravizar os povos não-cristãos? Pois ele continua vivo, apesar de bem mascarado pelo léxico técnico-científico dos PIBs, IDHs e outros tantos indicadores na corrida pelo crescimento. Como se o “bem-estar” dos países dominantes caísse dos céus, via milagre sócio-econômico, e não dependesse, justamente, dos oitenta por cento que sustentam o edifício — muitos deles renegados a níveis inferiores de existência, mais próximo do reino animal e vegetal que dos Elon Musks e Zukerbergs da vida. A má notícia é a seguinte: se você está acompanhando esse raciocínio na língua original em que foi escrito, o português, é chance quase certeira de você fazer parte desse enorme grupo de marginalizados pela casta da “verdadeira humanidade”.
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Aqui é o momento dos neurônios conservadores ligarem o sinal de alerta vermelho: “por vias desse argumento, daqui a pouco vamos começar a elogiar a miséria e pregar que devemos todos voltar a viver como caçadores-coletores em meio à selva”. Pois até mesmo essa ideia limite — que, aliás, parte da mesma técnica dos exorcistas do “fantasma do comunismo” —, repleta aparentemente de boas intenções e fundamentada em benefícios irrefutáveis, nasce de uma finalidade perversa: a de reafirmar que, quando buscamos a plenitude da espécie, apenas um modo de existência é válido.
Ao priorizarmos a produtividade às custas da sensibilidade, nos encontramos de repente abandonados no labirinto digital do Minotauro. Expulsos do bioma natural, só nos resta encarar a face monstruosa de nossa própria ignorância, emaranhada em seus truques baratos e proliferada por um jogo infinito de espelhos. Assim como os algoritmos digitais são filhos naturais da linguagem pautada na lógica e a inteligência artificial é o rebento previsível do racionalismo científico, o antropoceno e a distopia geopolítico-climática são a consequência trágica generalizada, ou globalizada, da ideia de humanidade.
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É devido à insistência em e à todas as ramificações da separação físico-cognitiva de natureza e cultura, a patrona das ciências ocidentais, que ficamos hoje espantados por um passarinho conseguir prever, com quase uma estação de diferença em relação à meteorologia, a chegada de furacões. É por conta da supervalorização de certos paradigmas em detrimento de métodos de sabedoria diversos — em relação a esses últimos, podermos pensar, por exemplo, na facilidade dos indígenas mateiros em reconhecer as características completas de um indivíduo apenas por sua pegada no chão —, que ficamos surpresos de ainda existirem povos caçadores-coletores lépidos e vigorosos em diversas regiões do “terceiro mundo”. Hoje sabemos que o ancestral comum dos mamíferos, um dos poucos sobreviventes do cataclismo cretáceo que aniquilou os dinossauros, tinha o tamanho próximo de um rato pequeno. Teria ele se safado pelo tipo de inteligência tão valorizado hoje por nossa escala de sobrevivência humana, por outros tipos de pensamento dos quais ainda não temos a mínima noção, ou simplesmente por força do acaso? Dada a nossa visão enviesada e limitada do mundo, fica difícil arriscar uma resposta.
Porém, uma coisa é certa: se os ancestrais dos pássaros foram os “vencedores” durante um bom período em eras geológicas passadas, quem ficou pra cantar a história não foram os exemplares que dominavam os quatro eixos do mundo, mas sim aqueles que, por suas dimensões reduzidas e leveza, buscaram afinar sua percepção aos mais sutis movimentos da Terra.
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Será que os passarinhos que restaram tão ligados no encantamento?